Nove de Novembro

Nove de Novembro de 1988

(Ernesto Germano Parés – escrito em 2003)

Para obter o texto a seguir em word: https://rapidshare.com/files/51500161/Nove_de_Novembro.doc

 

Várias vezes, em seminários e palestras de que participei, pediram-me para contar a história do 9 de novembro e os acontecimentos na Companhia Siderúrgica Nacional. A ação do exército contra operários em greve, resultando no assassinato de três jovens metalúrgicos, é uma curiosidade permanente entre os que vivem dentro do movimento sindical e todos os que se preocupam e acompanham os movimentos sociais em nosso país.

 

Sempre que solicitado, contei esta história e respondi as perguntas que iam sendo feitas. Mas sempre evitei escrever sobre aqueles fatos e posso justificar.

 

Em primeiro lugar, por ter estado tão envolvido nos acontecimentos, temo me estender demasiadamente nos detalhes dos acontecimentos e na narrativa dos fatos e acabar fazendo um longo texto que ninguém teria paciência de ler. Depois, preocupo-me com a possibilidade de esquecer um ou outro companheiro, deixar de citar alguém.

 

Por fim, minha maior preocupação é não permitir que a emoção tome conta das lembranças e o texto acabe se alongando em detalhes pouco importantes para uma análise.

 

Agora, vencendo essas preocupações, resolvi fazer uma tentativa de registrar minha homenagem aos que enfrentaram a violência do capital com as únicas armas que têm: a união, a solidariedade e a coragem.

 

I – Volta Redonda, a CSN e o Sindicato

 

A cidade de Volta Redonda é um exemplo típico da era da “industrialização” brasileira. Uma antiga fazenda de café que foi desapropriada pelo governo Getúlio Vargas para a construção da primeira Usina Siderúrgica do país.

 

Sem entrarmos na história da criação e construção da Usina, podemos dizer que a cidade foi construída em volta da planta industrial e, no início, tinha sua vida totalmente dependente a própria empresa. Era a CSN a responsável pelo policiamento da cidade, pela urbanização, pelo transporte, etc. A Siderúrgica era também, de fato, a Prefeitura da cidade.

 

A Companhia Siderúrgica Nacional transformou-se na maior siderúrgica da América Latina e a única produtora de folha de flandres[1] no hemisfério sul, responsável, na época da greve de 88, por 12 % da produção mundial deste material.

 

Neste período, por estar em fase de instalação de novos equipamentos, a empresa tinha cerca de 21 mil trabalhadores em seus diversos setores e segmentos industriais. Destes, aproximadamente 80% eram sindicalizados.

 

Considero estes números importantes porque a população da cidade, na época que vamos retratar, era de cerca de 320 mil habitantes e, certamente, o peso dos metalúrgicos era muito grande na vida local.

 

Antes do golpe militar de 64, Volta Redonda foi um forte reduto de comunistas e o sindicato tinha participação ativa nas mobilizações operárias do período. A tal ponto que, no dia do golpe, a sede foi cercada por tropas armadas e a diretoria foi arrancada do prédio diretamente para o quartel onde muitos permaneceram por longos anos e foram violentamente torturados.

 

No período da ditadura, a cidade tornou-se “Área de Segurança Nacional”, com prefeitos nomeados pelo governo federal e com a vida política e social permanentemente vigiada pelos organismos de informação.

 

Só em 1983, depois de uma tentativa anterior, a oposição sindical – liderada por Juarez Antunes – conseguiu conquistar o Sindicato e tirar de lá uma diretoria que se perpetuava com o apoio dos militares e da direita da região.[2]

 

Era o início de uma fase de enfrentamentos e, em 1984, desembocou na primeira greve da história da Siderúrgica que, na maneira de falar dos operários, estava perdendo a virgindade aos quarenta anos de idade.

 

II -  Antecedentes da greve

 

O Nove de Novembro de 1988, na verdade, começou alguns meses antes. Com pouca chance de errar, arrisco-me a dizer que tudo começou numa tarde de agosto durante uma reunião normal da diretoria do Sindicato quando um dos diretores passou a dar informes do ânimo dos trabalhadores no interior da Usina.[3]

 

A avaliação apresentada pelo diretor era de uma situação de insatisfação geral entre os metalúrgicos, principalmente no terreno econômico. Os outros diretores do Sindicato que também tinham entrada livre na Usina confirmaram esta análise e disseram que os trabalhadores estavam muito motivados para um movimento por melhorias salariais, mas o problema era que a data-base (maio - época de negociar novos acordos) da categoria ainda estava muito distante e isso ia deixando o pessoal ainda mais preocupado.

 

Ao final da reunião, a diretoria concluiu que – concretamente – só havia a possibilidade de lutar pela reposição da URP e pelos atrasados do Plano Bresser, e que se iniciaria imediatamente esta campanha.[4] De toda forma, considerando o período retroativo, se a CSN fizesse o pagamento dos atrasados da URP daria um bom dinheiro extra para os trabalhadores – quase dois salários para cada um. E criou-se um lema para a campanha do pagamento da URP: “Buscar a castanha do Natal”. A idéia era forçar a empresa a fazer o pagamento antes do final do ano.

 

Em setembro a campanha já tinha tomado força e mobilizava os trabalhadores. A possibilidade de receber esses atrasados dava um ânimo novo e as reuniões passam a ser permanentes, pois todos sabiam que provavelmente seria preciso chegar a uma greve para arrancar o pagamento.

 

Todo o mês de setembro foi ocupado com pequenas assembléias setoriais, reuniões com ativistas e levantamento das condições para a paralisação. Duas grandes preocupações tomavam o tempo das reuniões de diretoria:

 

a – nas três últimas greves realizadas na CSN, o exército foi enviado para a cidade e os trabalhadores recuaram no movimento e voltaram a trabalhar, apesar da diretoria defender em contrário. A imprensa local havia aproveitado o fato para dizer que o Sindicato perdera a liderança e que os trabalhadores não queriam a greve;

 

b – como em outras greves, o Sindicato preocupava-se com a manutenção dos equipamentos essenciais. Uma Siderúrgica não é como uma fábrica de automóveis, por exemplo, que se desliga a máquina e para de trabalhar. Na siderurgia alguns equipamentos precisam continuar funcionando ou há perda total. Um Alto Forno não pode ser desligado, mas pode ser preparado para ficar aquecido sem produzir aço, e isso requer equipes treinadas, bem organizadas e sob uma liderança reconhecida.

 

Em outubro, no dia 05, era promulgada a nova Constituição Federal. Isto dava novo fôlego ao movimento porque a Constituição garantia dois direitos que já eram motivo de reivindicações dos metalúrgicos há muito tempo: turno de 6 horas para os trabalhadores em regime de revezamento (eram 8 horas) e readmissão dos trabalhadores demitidos por motivos de greves ou políticos.

 

Imediatamente, as duas bandeiras foram incorporadas pelos trabalhadores e a campanha tomou força. A luta pela reintegração dos demitidos nas greves anteriores, em particular, era uma questão que unificava muito os metalúrgicos e que tinha um grande apelo junto à população da cidade.

 

III – Um final de semana agitado

 

Sexta-feira, dia 04 de novembro – uma Assembléia convocada pelo Sindicato aprovava o início da greve para a segunda-feira (07/11), durante a entrada do turno da noite. Ficou também decidido que seria realizada uma nova Assembléia às 17 horas, antes do início da greve, para o caso da empresa acatar as reivindicações, evitando a paralisação.

 

Sábado, dia 05 de novembro – entre minhas funções, como assessor do Sindicato, estava a de fazer reuniões periódicas com os ativistas[5] da CSN.

 

Naquele sábado, estava já marcada uma reunião para avaliarmos as condições para a greve e a distribuição das tarefas de cada um. Precisávamos discutir o boletim que seria distribuído antes da Assembléia e também a possibilidade da empresa aceitar o que os metalúrgicos queriam (pagamento da URP atrasada, reintegração dos demitidos e turno de 6 horas).

 

Foi uma reunião cheia de informes sobre a situação de cada equipamento, quais precisavam de mais atenção por estar em pior situação, que setores poderiam parar primeiro, etc. Ao final, é claro, todos falaram da possibilidade de tropas do exército serem enviadas para ocupar a Usina e intimidar os grevistas.

 

A maior parte dos presentes achava que os trabalhadores estavam mais conscientes e que não se intimidariam com as tropas. Alguns chegaram a falar de companheiros que “sentiram vergonha” porque voltaram a trabalhar nas greves anteriores. Ninguém pensava na possibilidade de um fracasso.

 

Domingo, dia 06 de novembro – havia uma reunião da diretoria do Sindicato já marcada. Serviria para se fazer um balanço do movimento, preparar o boletim que seria distribuído, dividira as tarefas entre os diretores para a segunda-feira e avaliar a questão das eleições.

 

Este ponto tinha importância para todos. O presidente do Sindicato, Juarez Antunes, havia se licenciado de seu mandato como Deputado Federal Constituinte para disputar a Prefeitura da cidade em eleição marcada para o dia 15. Há muito alimentávamos esta meta de tirar a cidade da mão da direita e o candidato do sistema estava bem colocado nas pesquisas.

 

O problema era que uma greve, faltando poucos dias para as eleições, poderia jogar a candidatura do Juarez por terra. De uma forma ou de outra – sendo vitoriosa ou não – a greve seria certamente um ponto de propaganda muito forte para a direita da cidade.

 

Todos se posicionaram, durante a reunião. Houve até quem propusesse suspender a greve para depois do dia 15. Mas Juarez não abria mão da greve já marcada...

 

Na tarde do domingo, já com novas informações sobre o ânimo dos trabalhadores, ficamos sabendo que havia movimentação no quartel de Barra Mansa e que o exército viria mesmo para a cidade. Era necessário mudar os planos porque a informação era de que as tropas iriam chegar na hora da Assembléia que iniciaria a greve (cinco da tarde da segunda-feira).

 

Um dos companheiros da reunião fez nova proposta: se o exército vai chegar na hora de começar a greve, então vamos antecipar a paralisação.

 

A idéia tomou forma. Ficou acertado que um grupo de diretores do Sindicato entraria na Usina, segunda-feira, junto com o pessoal da manhã – às seis horas – levando um pequeno panfleto que comunicava o início da greve. Ou seja: a greve ia começar de dentro para fora. Seriam parados primeiro os departamentos secundários, até chegar aos principais.

 

Na noite de domingo, ainda foi necessário procurar alguns companheiros ativistas para dar informes sobre as mudanças.

 

IV - Começa a greve.

 

Segunda-feira, dia 07 – tudo começou exatamente como o previsto. Um grupo de diretores e ativistas entrou com um panfleto curto e objetivo: “A Greve Começou”. Imediatamente os vários setores iam aderindo e parando os equipamentos que podiam parar ou preparando os mais delicados para o desligamento.

 

Por volta das oito horas, eu estava no Sindicato quando recebi a notícia que a paralisação já era um fato e que só os equipamentos essenciais estavam ainda em funcionamento. A previsão era de que até a tarde tudo já estivesse pronto para começar o abafamento do Alto Forno.[6]

 

No interior da Usina, grupos de ativistas do Sindicato cuidavam para que não houvesse precipitações ou violência. A preocupação era não deixar o pessoal aceitar provocações da chefia nem abandonarem a área da Usina.

 

Tudo corria tão bem que na hora do almoço, mesmo estando de plantão no Sindicato, saí para almoçar no bar em frente. Os metalúrgicos seguiam firmemente as orientações do Comando de Greve e estavam tranqüilos porque todos os diretores do Sindicato estavam na Usina e conversavam com cada um.

 

No início da noite foram distribuídas as tarefas para a alimentação do pessoal e para organizar atividades que ajudassem os metalúrgicos a passar o tempo. A greve era de “ocupação” e ninguém iria sair para dormir em casa! A tranqüilidade era ainda maior porque as tropas do exército não tinham aparecido, como esperado, e os metalúrgicos achavam que já não viriam. Alguns diretores ficariam na Usina com os trabalhadores e outros iriam descansar, num revezamento já planejado.

Por meu lado, eu passaria a noite no Sindicato e havia também um plantão previsto de alguns funcionários.

 

E este é um ponto que eu gostaria de destacar. Havíamos alcançado um grau importante de comprometimento dos funcionários com as atividades da categoria e havia alguns que, espontaneamente, se ofereciam para permanecer fora do horário normal de trabalho. Simplesmente batiam o ponto, encerrando o expediente, e ficavam por lá colaborando e fazendo o que fosse necessário.

 

Mas nada aconteceu e a noite correu tranqüila, jogando baralho ou conversando. Vez por outra um companheiro telefonava de dentro da Usina para dar informes e tudo estava em calma por lá. Tinha até um churrasco e alguém tocando violão.

 

Terça-feira, dia 08 – Havia uma Assembléia prevista para a manhã. Seria mais uma grande reunião para balanço do movimento e avaliar a necessidade de novas providências. Ao final, para assegurar a posição dos metalúrgicos, novamente foi votada a continuidade da greve e aprovada por unanimidade. Era um mar de braços levantados...

 

O movimento começou a mudar de figura na tarde da terça-feira quando o telefone tocou no Sindicato. Eu ainda estava por lá – na verdade, tinha me mudado com roupas e outros apetrechos – e atendi a ligação que a telefonista me passou. Era a esposa de um metalúrgico que morava na estrada entre Barra Mansa e Volta Redonda para dizer que vários caminhões com soldados do BIB estavam passando em nossa direção.

 

Agradeci e liguei imediatamente para a Usina, passando a informação para vários diretores que estavam em pontos diferentes com grupos de operários. E o pessoal recebia a notícia com um “uff”, como se já estivessem esperando isso e pensassem que os soldados estavam atrasados.

 

Pouco depois o telefone volta a tocar e as informações agora diziam que também da outra extremidade da cidade estavam chegando mais soldados vindos de Valença. Eu comecei a achar que já era muito porque, nas outras greves, só o Batalhão de Barra Mansa costumava vir.[7] Mas passei também esta informação para os companheiros que não consideraram grave a situação.

 

No final da tarde da terça-feira já estavam em Volta Redonda vários batalhões e os soldados ocupavam a entrada da Usina com ninhos de metralhadoras, tanques e outros veículos de combate. Faziam uma espécie de cerco na área como se estivessem impedindo os trabalhadores de invadir a CSN e, certamente, isto era apenas uma cena para ser filmada e fotografada para a imprensa do restante do país dando a impressão de que estavam ali para impedir os metalúrgicos de entrar.

 

Isto fica claro nas primeiras declarações oficiais dos militares dizendo que tinham sido enviados para garantir o patrimônio da Siderúrgica. A imprensa quase não dizia que os metalúrgicos estavam dentro da Usina e, quando falava sobre isso, reduzia o número de trabalhadores e não dizia que os serviços essenciais estavam sendo mantidos. Havia já um bem planejado trabalho de criar um sentimento contrário aos trabalhadores na opinião pública fora da cidade.

 

Sabiam que nada poderiam fazer quanto aos próprios moradores de Volta Redonda porque viam o integral apoio da população aos grevistas. As associações de moradores e comunidades da Igreja Católica faziam acampamentos nas proximidades da Usina, com fogões e panelas. O cheiro de comida fresca era uma constante... sucos e refrigerantes atravessavam a cerca e desapareciam em segundos. Na entrada principal da CSN estavam permanentemente milhares de pessoas, mulheres e crianças, a família metalúrgica que se movimentava em apoio aos seus parentes.

 

Mas também esta noite transcorreu sem incidentes. Havia uma grande quantidade de soldados dentro a Usina, sempre se posicionando perto dos locais de concentração dos metalúrgicos, mas não havia confronto. Por várias vezes telefonei para saber como estava o clima lá dentro e a resposta era sempre a mesma: “tudo bem”. E, do lado de fora, foram muitas as barracas armadas por familiares e amigos dos metalúrgicos que se preparavam para passar a noite ali, uma espécie de vigília da cidade que se sentia também em greve.

 

V – O Dia 9

 

Na manhã da quarta-feira, dia 9, já sabíamos que as coisas seriam diferentes. Houve movimentação de tropas durante toda a noite, novos batalhões vindos de Resende e outros quartéis chegavam a Volta Redonda. Muitos carros de combate estavam posicionados nas quatro entradas da Usina e os soldados pareciam nervosos. E víamos também, pela cidade, uma inusitada quantidade de soldados da Polícia Militar do Rio de Janeiro enviados pelo governador Moreira Franco.

 

A Vila Santa Cecília, bairro central e centro do comércio da cidade, estava totalmente ocupada por soldados da PM e os carros da polícia circulavam por todos os lados. No Sindicato, era grande a quantidade de pessoas que me procuravam para ter informações de algum parente ou conhecido grevista ou então para oferecer ajuda. Pessoas que eu nunca tinha visto na vida se ofereciam para levar os panfletos do Sindicato e saíam distribuindo pela rua, alguns ofereciam o carro para transportar material ou comida, outros traziam bolsas com alimentos.

 

Mais uma vez, como estava marcado, foi feita uma Assembléia na porta da Usina para ver a disposição dos operários. Essas Assembléias eram feitas no portão principal da CSN para que todos participassem: os que estavam lá dentro e os do lado de fora. Eram verdadeiras Assembléias Populares porque os moradores da cidade também se posicionavam, falavam e votavam. E, mais uma vez, foi aprovada a continuidade do movimento.

 

O restante do dia nós passamos organizando os atos de solidariedade aos grevistas. No Sindicato eu fazia contatos com outras entidades e recebia as informações dos vários movimentos organizados da cidade que estavam preparando passeatas e manifestações de apoio. Vez por outra algum diretor telefonava para dar informes do ânimo dos companheiros lá dentro, passavam matérias para o panfleto da noite ou pediam para dar recados aos familiares. Eu me sentia como enraizado na cadeira perto do telefone! A grande esperança era acontecer uma chamada da CSN aceitando negociar as reivindicações, mas esta ligação não chegava... A empresa permanecia muda em relação ao Sindicato e só falava com a grande imprensa para criar pânico, dizendo que os equipamentos da Usina estavam correndo risco, que o prejuízo já era de não sei quantos milhões de dólares, etc.

 

Veio a tarde, a movimentação no Sindicato aumentou. Estávamos programando um ato público de apoio aos metalúrgicos na entrada da Usina. Haveria músicas e a idéia era permitir que as famílias dos operários enviassem recados para o pessoal através do carro de som, tipo programa de rádio que “fulano envia esta música para sicrano”. O silêncio da CSN indicava que seria uma greve longa e era preciso manter o pessoal animado.

 

Já perto das seis da tarde, o Sindicato ficou quase vazio. Todos tinham ido para o Ato e até alguns funcionários que estavam por lá para ajudar perguntaram se poderiam ir também, já que não tinha nada para fazer. Concordei e continuei na cadeira que já fazia parte de mim.

 

Tudo começou muito rápido! Pouco depois, duas funcionárias que saíram para ver o Ato voltavam correndo e chorando, muito nervosas.

 

- A polícia está batendo no pessoal, na rua, e jogando bombas de gás! Tomaram conta da Vila e invadiram até lojas comerciais procurando o pessoal que estava no Ato!

 

Imediatamente eu liguei para os companheiros que estavam na Usina para saber como estava por lá. O Marcelo Felício, vice-presidente do Sindicato e presidente em exercício, atendeu e disse que a situação estava piorando rapidamente. Do alto da aciaria, onde estavam, os metalúrgicos podiam ver a correria na rua e ficavam revoltados com a covardia dos PMs. Muitos estavam preocupados porque sabiam que suas esposas e filhos deveriam estar lá. Pelo telefone, cheguei a ouvir o barulho que os operários faziam batendo com pedaços de ferro contra as paredes de chapas de aço do enorme prédio que é a aciaria. Era um som assustador, muito alto e cadenciado porque eles batiam juntos.

 

Por alguns instantes, fiquei sem saber como agir. Pensei em sair do Sindicato e ir para a Usina, depois achei melhor ficar por ali, pois toda a diretoria estava lá dentro e era difícil tomar qualquer iniciativa. Recebi novas informações sobre o que ocorria na Vila e começava a me assustar: soldados da PM invadiam lojas e lanchonetes, quebraram várias vitrines. Os soldados do exército furavam pneus de carros com as baionetas. E eu sabia que era dia de consulta do meu filho na fonoaudióloga que tinha consultório na Vila.

 

Tudo foi fartamente documentado e filmado. Há vários vídeos mostrando a ação dos soldados no centro da cidade e, inclusive, a TV Manchete chegou a colocar algumas cenas no noticiário da noite (acho que foi a única). Tenho um desses vídeos, até hoje, guardado...

 

Começava a pior parte da história. Pouco depois o Marcelo voltou a ligar para o Sindicato:

 

- Ernesto, você precisa fazer alguma coisa aí de fora! Os soldados estão atirando, e não é bala de borracha, não. Os tiros batem no teto da aciaria e furam as chapas... Liga para o Dr. Ulysses e fala também com a imprensa. Está difícil de conter o pessoal... Os soldados estão ameaçando invadir a aciaria e aí eu não sei o que vai acontecer...

 

- Apague a luz!

 

Gritei isso sem pensar... Eu sabia que os metalúrgicos conhecem muito bem cada canto daquele imenso galpão que é a aciaria, mas duvidava que os soldados tivessem coragem de entrar estando tudo escuro. Esperei um pouco e o Marcelo voltou a falar dizendo que iam apagar...

 

Desliguei o telefone e pensei “não vai dar tempo de telefonar para toda a imprensa.”

 

- Cidinha - pedi para a telefonista – ligue para o Sindicato dos Jornalistas do Rio... Veja se tem algum diretor por lá!

 

Por sorte tinha. Era uma companheira da diretoria que já não lembro o nome e, depois de me identificar, passei todas as informações sobre o que estava acontecendo. Pedi ajuda...

 

- Por favor, espalhe isto pela imprensa daí!

 

“Pode deixar”, respondeu e desligou.

 

Foi neste momento que eu cometi um dos maiores erros da minha vida, mas que acabou dando certo. O Marcelo tinha pedido para eu telefonar para o Dr. Ulysses. Ele estava pensando no Dr. Ulysses Riedel, nosso advogado com escritório em Brasília e presidente do Diap. Mas eu troquei tudo:

 

- Cidinha, agora liga para o Ulysses Guimarães!

 

Claro, Ulysses Guimarães era o Presidente da Assembléia Constituinte, e Juarez era deputado federal constituinte, mesmo licenciado. Isto fazia lógica na minha cabeça...

 

Poucos minutos depois - não me perguntem como - a Cidinha me chamou dizendo que o Ulysses estava na linha.

 

Tenho que admitir que foi inacreditável! Ele já estava em casa, descansando, e me atendeu cordialmente. Passei todas as informações, disse que o Juarez estava cercado pelos soldados dentro da Usina e que diziam que estavam com ordens para prendê-lo. Falei que os soldados estavam atirando e que já havia muitos feridos entre as pessoas que estavam no centro da cidade. E ele perguntou se eu sabia o nome do comandante que estava em Volta Redonda e anotou minha resposta (claro, eu sabia!). Pediu para desligar e que eu ficasse aguardando outra ligação. Dei para ele o outro número de telefone, que raramente usávamos e estaria mais disponível.

 

Enquanto eu falava com Ulysses Guimarães, o Sindicato ia se enchendo de pessoas que fugiam da Vila. Alguns estavam feridos, mas havia também muita gente chorando de nervosismo e de raiva. Pedi para as funcionárias do Sindicato atenderem todos... prepararem café, refresco, calmante, etc.

 

O telefone que me ligava com a Usina voltou a tocar e eu tremi. Antes de atender, pedi para o vigia do Sindicato fechar o portão e só deixar entrar pessoas conhecidas ou feridos. Eu estava com medo que os soldados resolvessem invadir o prédio. Só depois atendi.

 

- Ernesto, já tem um companheiro morto. Está aqui, perto de mim! Não sei onde anda o Juarez... Faz alguma coisa... qualquer coisa... liga para o Dr. Juvenal.

 

O Marcelo deu a notícia assim, sem meias palavras... E eu só tive tempo de perguntar se as luzes continuavam apagadas e imaginei como faria para encontrar o Dr. Juvenal, presidente da CSN.

 

A companheira do Sindicato dos Jornalistas estava funcionando e o telefone começou a tocar sem parar. Rádio, televisão, jornais... todos querendo saber o que se passava. E eu tinha esta triste notícia para dar: “... já temos um operário morto! Não sabemos se há outros...”

 

Por volta das nove horas da noite o Sindicato estava lotado. Muitos querendo ajudar, outros querendo notícias. Eu chamei alguns companheiros que conhecia bem e dividi algumas tarefas, pedi para ajudarem a organizar o atendimento antes que se criasse pânico e ficássemos impossibilitados de manter a calma e as ações que eram necessárias. A Rosa e a Cora, duas secretárias que também estavam sempre dispostas a ajudar nas greves, se desdobravam atendendo e acalmando o pessoal.

E eu já sabia dos três companheiros mortos, mas ficava controlando a informação. Tinha que passar isso para a imprensa, mas tinha cuidado para não criar uma situação incontrolável dentro do Sindicato. Precisávamos também fazer contato com a CUT e com outros sindicatos para pedir ajuda e que nos enviassem dirigentes para ajudar a organizar o movimento.

 

Antes das dez horas, a conversa com Ulysses Guimarães começou a fazer efeito. Quando o telefone tocou, a Cidinha me chamou dizendo baixinho:

 

- É o general!

 

Peguei o telefone e estava bastante nervoso. Respirei fundo... Do outro lado, o general perguntou com quem estava falando. Acho que mediu bem para saber se valia a pena falar comigo, e, sabendo que não teria um diretor para falar, me intimou:

 

- Vamos fazer um acordo. Você manda seus homens recuarem e pararem as provocações que eu mando a tropa não invadir a aciaria.

 

Ainda não sei de onde tirei a resposta:

 

- General, nós não temos “homens”! Lá dentro estão trabalhadores, em greve, conscientes do que estão fazendo. Tudo eles decidem lá, entre eles, votando... Eu posso é passar o recado para eles.

 

Ele desligou e eu comecei a achar que tinha feito uma baita besteira! Telefonei para a Usina e passei a informação para o Marcelo. Esperei a “bronca” que não veio...

 

- Ele vai ligar novamente. Espera que ele vai ligar...

 

Realmente, ele ligou. Poucos minutos depois, o general José Luiz Lopes voltava a ligar para o Sindicato e me perguntava se havia alguém em condições de negociar com ele. Eu respondi que sim e que daria uma relação com os nomes, mas pedi alguns minutos para confirmar e que ele, ao menos, mandasse os soldados pararem de atirar.

 

Já estava no Sindicato, prontificando-se para qualquer necessidade, o prefeito da cidade, Dr. Marino Clinger. Contei com ele e tentei localizar Dom Waldir Calheiros, bispo de Volta Redonda, para que fizesse parte da comissão. Ele aceitou imediatamente e eu ainda falei com o deputado federal Edmilson Valentim, que ouvira o noticiário no rádio do carro e mudou o itinerário indo para Volta Redonda. Só faltava localizar o Juarez que devia estar em algum lugar dentro da CSN, mas eu não conseguia achar...

 

Quando um oficial ligou para saber quem iria falar com o general, eu passei a lista: Dom Waldir Calheiros, Dr. Marino Clinger, Edmilson Valentim e Juarez Antunes. Ele me comunicou o local do encontro – no Hotel Bela Vista – e perguntou se eu iria também. Respondi que não e que iriam só aqueles, com o motorista do Sindicato.

 

A reunião aconteceu pouco antes da meia-noite. Um companheiro havia localizado Juarez e ele ainda chegou para se juntar ao grupo.

 

Durante o curto encontro, foi feito um acordo com o general: os soldados suspenderiam o fogo, imediatamente. Cada lado manteria sua posição, até o dia clarear, e os metalúrgicos se retirariam da Usina ordenadamente, se não houvesse novas provocações. Mas, somente com o dia claro... Nenhum trabalhador sairia da CSN durante a noite.

 

Na manhã de quinta-feira, mal começava a clarear o dia, Juarez estava na portaria para acompanhar a saída dos operários. Não vou descrever muito porque todos os jornais fotografaram e estamparam, em primeira página, a imagem dos metalúrgicos se retirando com os rostos tampados e fazendo o sinal da vitória. Durante três dias estiveram na Usina, ficaram toda uma noite sem alimentos, sem água e sob fogo dos soldados, mas saíam de cabeça levantada e cantavam “a greve continua... na Usina ou na Rua... a greve continua”!

 

Destaco apenas uma entrevista do próprio general José Luiz, aos jornais, dizendo que o centro de informações do exército havia falhado: segundo suas informações, haveria cerca de 300 ou 400 metalúrgicos na aciaria. Mas, pela manhã, ele viu sair mais de 5.000 lá de dentro!

 

Passando em Volta Redonda, hoje, bem em frente da entrada principal da Usina e marcando o local onde teve início a agressão, você verá um Memorial. São três placas de concreto, verticais, atravessadas por uma lança. No alto, você lerá: “A William, Valmir e Barroso, a homenagem de seus companheiros.”

 

O Memorial foi inaugurado no dia 1° de maio de 1989 e derrubado por uma bomba no dia seguinte. Até hoje não se conhece a autoria do atentado, mas o Memorial está novamente lá, de pé, levantado pelos próprios metalúrgicos que trabalharam em regime de mutirão, e mantendo as marcas da bomba como cicatrizes no corpo.

 

Quem foram estes companheiros? Que bárbaros terroristas foram liquidados pelas balas do exército?

Carlos Augusto Barroso tinha só 19 anos. Acabara de fazer o serviço militar e a CSN era o seu primeiro emprego. Barroso estava noivo e tinha projetos de voltar a estudar para seguir carreira na siderúrgica. William Fernandes Leite tinha 23 anos e sua família era de Minas Gerais. Valmir Freitas Monteiro, de 22 anos, trabalhava na FEM (Fábrica de Estruturas Metálicas, da CSN).

 

Valmir foi atingido por um tiro na nuca e gritou “Está doendo, acho que me acertaram”. O corpo de Valmir estava perto do Marcelo Felício quando ele telefonou para o Sindicato. Barroso, além dos tiros recebidos, teve o crânio esmagado por coronhadas de fuzil. William estava voltando do refeitório na hora que os soldados começaram a atirar. Foi surpreendido na passarela e, mesmo atingido pelos tiros, ainda andou cerca de 30 metros. Quando caiu, seus companheiros viram que já estava morto e carregaram o corpo para junto dos soldados, pedindo atendimento.

 

O Sindicato conseguiu ainda identificar cerca de trinta metalúrgicos feridos por balas dos soldados e mais de duzentas pessoas foram atendidas nos hospitais em decorrência das violências dos militares no centro da cidade.

 

A quinta-feira foi marcada por uma extrema indignação em toda a cidade. O Sindicato permaneceu com as portas abertas e seu pátio não tinha lugar para tantas pessoas que chegavam para prestar solidariedade ou para oferecer ajuda. Em vários pontos de Volta Redonda aconteciam reuniões de moradores para avaliar a situação.

 

Durante toda a madrugada, o exército havia negado as mortes e a CSN mantinha o necrotério do seu Hospital fechado. Só com a presença de uma delegação da Ordem dos Advogados do Brasil é que diretores do Sindicato e jornalistas puderam entrar no necrotério e ver os corpos dos metalúrgicos mortos. Um cinegrafista amador, conhecido dos diretores do Sindicato, filmou estes momentos e os corpos dos metalúrgicos assassinados.

 

VI – A cidade estava em greve

 

“– Eu pensei que estavam exagerando nas notícias, mas o Sindicato é a cidade toda!”

 

A frase foi dita por uma jornalista da revista Veja, quando conversava comigo na janela do Sindicato e olhava para a Usina. Eu estava mostrando para ela, do alto, alguns detalhes da CSN e falando dos principais acontecimentos.

 

Desde o início da tarde do dia 09, quando já se sentia no ar o clima entre os soldados e os metalúrgicos se preparavam para manter a greve durante a noite, foram realizadas várias assembléias no interior da Usina. O pátio da SOM – Superintendência de Oficinas Mecânicas – era o local ideal para as reuniões e assembléias por ser bem central, amplo e permitir deslocamento de carros. Todos sabiam o que deveriam fazer em caso de agressão ou de provocação dos militares, para onde deveriam ir e como agir. Só não estavam esperando tanta violência nem a agressão covarde contra pessoas que estavam do lado de fora, na rua.

 

A saída dos operários da Usina foi realmente uma das cenas mais emocionantes que já vi. Milhares de trabalhadores passavam pelo corredor formado pelos soldados bem armados e muito nervosos. Os “heróis da aciaria”, como foram depois chamados, mantinham seus rostos cobertos e o braço levantado com o punho para o alto. Do lado de fora, nas ruas e na praça, milhares de moradores da cidade recebiam os companheiros aplaudindo e cantando o Hino Nacional Brasileiro. Imediatamente foi armada uma passeata que percorreu as principais ruas do centro e se dirigiu ao prédio do Sindicato, e todos sabiam que a greve ia continuar.

 

No dia 13, os jornalistas que cobriam os acontecimentos de Volta Redonda puderam documentar outra demonstração da união daquela cidade: na Praça Brasil, próximo da Cúria Diocesana, foi realizada a missa campal em memória dos três companheiros.

 

Jornais reconhecidamente conservadores, como O Globo, noticiaram que “mais de 20 mil pessoas assistiram a missa”. Sob uma chuva fina, um grupo de metalúrgicos uniformizados vinha caminhando pela rua e carregando uma enorme cruz de madeira onde estava presa, ainda suja de sangue, a camisa do uniforme de um dos companheiros mortos. Com palmas compassadas, o povo acompanhava o som do tambor que marcava os passos dos metalúrgicos que, chegando perto do palanque, ergueram a cruz em meio ao mais absoluto silêncio.

 

Os nomes de William, Valmir e Barroso foram repetidos e, a cada um, o povo respondia: “Presente”. Cinco bispos católicos estavam no palanque: Dom Waldir Calheiros (Volta Redonda), Dom Mauro Morelli (Duque de Caxias), Dom Adriano Hipólito (Nova Iguaçu), Dom Vital Walderink (Itaguaí) e Dom Amauri Castanho (Valença). Ao final da missa, Dom Waldir apontou para o uniforme preso na cruz e disse que ali estava o símbolo da violência que se abatia sobre os trabalhadores brasileiros.

 

Os dias seguintes foram de muita organização na cidade. Em todos os bairros funcionavam comitês de apoio aos grevistas e eram realizados atos de solidariedade. De outras cidades chegavam caravanas de trabalhadores e sindicalistas para ajudar, prestar solidariedade e protestar contra a violência. E os soldados permaneciam sozinhos, no interior da Usina, sem saberem o que estavam fazendo ali, pois não entendiam nada de siderurgia!

 

VII – As eleições, o salvamento do Alto Forno e o fim da greve.

 

Dois dias depois da missa, no 15 de novembro, haveria eleições municipais em todo o país. Na Assembléia dos metalúrgicos do dia 14, com a praça totalmente lotada, a diretoria do Sindicato fez nova consulta para saber se os metalúrgicos desejavam suspender a greve.

 

Diante da unanimidade das posições em favor da continuação do movimento, o Sindicato fez um alerta para que nenhum trabalhador aceitasse as provocações da direita e dos soldados. Que todos fossem votar normalmente e depois voltassem para a praça onde estava estabelecido um estado de “assembléia permanente”. A palavra de ordem era: Votar e fazer greve; Fazer greve e votar!

 

Juarez Antunes foi eleito prefeito de Volta Redonda, com mais de oitenta por cento dos votos da cidade, e mais quatro metalúrgicos foram conduzidos à Câmara de Vereadores. Volta Redonda mostrava, também nas urnas, que estava ao lado dos metalúrgicos e contra os militares e o governo Sarney.

 

No dia 17, com os metalúrgicos ainda em greve e os soldados ocupando toda a Usina, a cidade acordou com uma notícia que deixou todos preocupados: o Alto Forno estava arriscado de sofrer perda total.

 

Os metalúrgicos, quando iniciaram a greve, haviam preparado o equipamento para ser “abafado”. Mas, de forma irresponsável, quando os soldados chegaram a direção da CSN avaliou que os metalúrgicos voltariam ao trabalho e deu ordens para os engenheiros religarem o equipamento. Mas nenhum operário estava lá para manter o funcionamento e os soldados não sabem como operar.

 

Uma vistoria promovida pelo Sindicato constatou que o Alto Forno estava em perigo. Os engenheiros da empresa diziam que dificilmente poderia ser recuperado com tecnologia nacional e logo correu o boato de que seriam contratados especialistas estadunidenses. Outros diziam que já não dava mais tempo e que a empresa estava condenada.

 

Na praça, às nove horas da manhã, os metalúrgicos realizaram uma Assembléia de emergência e foi indicada uma comissão de operários e técnicos para nova verificação da verdadeira situação. A diretoria do Sindicato pediu para a direção da empresa um carro fechado e que todos os soldados que estavam na área do Alto Forno fossem retirados para que a comissão entrasse. E a situação era tão grave que os pedidos foram imediatamente atendidos, com um carro da própria empresa chegando para conduzir os trabalhadores enquanto os outros aguardavam na praça.

 

Duas horas mais tarde, os companheiros voltavam da vistoria e comunicavam para a Assembléia que a situação era verdadeiramente grave, mas que seria possível fazer a operação de salvamento sem técnicos de fora ou sem gastos extraordinários. Os jornalistas que acompanhavam a Assembléia queriam saber como seria feito e se poderiam entrar para documentar a operação. Muitos trabalhadores se ofereciam para a tarefa e a diretoria do Sindicato precisou fazer uma seleção considerando o conhecimento e a experiência de cada um. Ao final, com cerca de cinqüenta companheiros indicados, foi solicitado um ônibus para conduzir a equipe e, mais uma vez, foi comunicado à CSN que nenhum trabalhador iniciaria a recuperação se encontrasse um só soldado por perto.

 

Antes de embarcarem no ônibus, sob a coordenação de um diretor do sindicato que também era técnico em siderurgia, os operários foram identificados com um crachá especial, feito pelo Sindicato, onde estava escrito: “Operação de Salvamento do Alto Forno” e o nome do companheiro.

 

A cidade permaneceu em alerta. Todos sabiam que dependiam, direta ou indiretamente, do Alto Forno e da CSN. Se a siderúrgica acabasse a cidade também acabaria... E, no final da tarde, toda a área próxima da entrada da Usina e do Escritório Central da Companhia estava tomada pelo povo de Volta Redonda. Era grande a inquietação e a procura por notícias. Mesmo as pessoas de fora, jornalistas e sindicalistas que nunca tinham entrado em uma siderúrgica, começavam a sentir a importância daquele trabalho e também ficavam preocupados com os resultados.

 

Por volta das nove da noite chegou a primeira notícia concreta: os trabalhos de recuperação da estrutura estavam quase no fim e eles esperavam poder começar a aquecer o equipamento durante a madrugada. Era uma boa notícia, mas não dava a certeza de que o Alto Forno resistiria na hora de fazer uma corrida, quando o ferro derretido em seu interior chega a 1250 graus centígrados. A praça e as ruas continuavam cheias e ninguém parecia com vontade de ir para casa.

 

Pouco depois das duas da madrugada, eu estava cochilando dentro do carro de som quando acordei com gritos e comemorações. Esfreguei o olho e vi aquele mar de gente, trabalhadores, crianças, homens, mulheres, idosos... todos se abraçavam e cantavam como se fosse uma radiosa manhã de carnaval! Antes de sair do carro para me informar melhor, eu quase adivinhava as palavras do Juarez logo que me viu:

 

- O Alto Forno está salvo e operando. Acabaram de fazer a corrida, está tudo perfeito e vão começar o novo abafamento porque a greve continua!

 

Ainda não havia clareado o dia e eu já estava novamente no Sindicato. Com o nosso funcionário da gráfica, confeccionamos um Diploma de agradecimento e o Juarez assinou cada um. Quando eles saíram da Usina, ainda cansados e sujos, iam sendo chamados ao carro de som e recebendo o Diploma onde estava escrito “Eu participei do Salvamento do Alto Forno”.

 

Em quase todos os bairros da cidade aconteciam reuniões de moradores que aprovavam o apoio e a solidariedade aos grevistas. Preparavam um grande Ato em defesa da democracia e da Siderúrgica. O “Abraço à Usina” mobilizou toda a cidade e exigiu muito cuidado por parte das lideranças para que não se transformasse em novo atrito com os soldados que haviam se instalado, com barracas e caminhões, no interior da CSN.

 

Alguns jornalistas, quando avaliaram a área ocupada pela Siderúrgica, chegaram a dizer que não seria possível fazer o “Abraço” porque, segundo eles calculavam, seria necessário reunir mais de 30 mil pessoas e isto seria difícil, principalmente com a cidade ainda sob o impacto das mortes.

 

Mas o “Abraço” aconteceu, no dia 20, e, deixando para trás qualquer expectativa, superou em muito o número de pessoas: mais de 70 mil! Em vários pontos, nos bairros mais próximos, havia um duplo cordão de gente com os braços dados. Um caminhão foi colocado à disposição dos jornalistas que, do alto, percorreram toda a extensão da CSN e registraram que não havia um espaço vago, nenhum claro no cordão humano que cercava a Usina e cantava o Hino Nacional.

 

Lá dentro, sem saber o que fazer com todos aqueles equipamentos, apenas os soldados e seus comandantes!

 

E a greve continuou. Por mais cinco dias os metalúrgicos da CSN enfrentaram o exército. Por mais cinco dias a população da cidade permaneceu ali, na praça. Uma cozinha foi improvisada, barracas foram armadas, e o povo ficou ali... Dormindo nas imediações do Escritório Central da empresa.

 

Mas outra demonstração de solidariedade ainda iria acontecer. Do Rio de Janeiro, um diretor do Sindicato dos Artistas telefonou para Volta Redonda anunciando que um grupo de artistas estava se prontificando a fazer um show em homenagem aos metalúrgicos. Chico Buarque de Holanda, Fagner, Lobão, Elba Ramalho e muitos outros apresentaram-se diante de dezenas de milhares de metalúrgicos e seus familiares no show que foi chamado “A Volta por Cima”.

 

No dia 23 de novembro, pela manhã, a direção do Sindicato foi convidada para uma reunião. Ao descer, Juarez pegou o microfone e anunciou para os trabalhadores:

 

- A CSN aceitou todas as nossas reivindicações. Vai pagar os atrasados, em três parcelas, implantar o turno de 6 horas e reintegrar todos os companheiros demitidos que estão na lista que nós entregamos para eles.

 

A praça estava novamente em festa. Depois de dezessete dias de greve, os metalúrgicos sentiam a vitória e lamentavam, apenas, as três vidas roubadas. Mas Juarez, antes de colocar em votação o final da greve, anunciou uma nova exigência que havia feito na mesa de negociação.

 

- Eu disse para eles que nós estamos prontos para voltar ao trabalho... mas primeiro eles vão tirar todos os soldados e tanques que estão lá dentro da Usina. Eu falei que nenhum metalúrgico entra na Usina enquanto tiver um só soldado lá dentro!

 

Os jornais noticiaram esta saída. O jornal O Globo noticiou assim:

 

“O Exército começou a deixar a Usina Presidente Vargas, em Volta Redonda, exatamente às 13h 40m, quando uma Veraneio cheia de oficiais cruzou os portões da entrada Leste da empresa, no bairro do Jardim Paraíba. A seguir passaram 71 veículos, entre caminhões, jipes, ambulância e caminhonetes, além de oito tanques. Às 13h 45m, o último veículo deixou a empresa.”

 

A greve acabou e, às duas da tarde, entravam para trabalhar os primeiros metalúrgicos do turno da tarde. No portão da empresa, os demais companheiros e a população de Volta Redonda aplaudiam os que entravam e gritavam o nome de William, Valmir e Barroso.

 

Final

 

Encerrado o movimento de Volta Redonda, os jornais passavam a dar atenção às notas oficiais do governo e do exército. As manchetes eram marcantemente favoráveis aos militares: “Exército diz que combateu guerrilha em Volta Redonda”, “Foi a maior resistência organizada até hoje”, “Houve uso de técnicas de guerrilha urbana”, etc.

 

Em nota oficial, o Comando do Estado Maior do Exército acusava o Sindicato de haver contratado pessoas estranhas à categoria para ensinar técnicas de guerrilha para os metalúrgicos (e cita quatro nomes) e diz que os operários estavam armados no interior da Usina. A nota diz ainda que foram lançados coquetéis Molotov contra os carros do exército e que “os operários estavam dispostos a tudo”.

 

O general que comandou as tropas é hoje ministro do Supremo Tribunal, nomeado por FHC, e declarou que não se arrepende porque “estava cumprindo ordens e defendendo a democracia”.

 

Juarez Antunes, presidente do Sindicato e eleito prefeito da cidade naqueles dias tumultuados, morreu em um acidente de automóvel 51 dias depois de sua posse.

 

O Nove de Novembro, em Volta Redonda, foi descrito em música feita por um metalúrgico e cantada pelo povo na praça.

 

“Eles fazem o que querem,

são intransigentes,

eles estão com poder.

A nossa única arma

é o direito de greve,

sabe Deus porque.

Se a gente quer dialogar

Eles mandam o exército

Pra negociar...

Em Volta Redonda,

a coisa ficou feia

e eles mandaram matar.

Mas nem por isso

nós vamos deixar de lutar.

Em memória de William, Barroso e Valmir

A nossa luta vai continuar.”

        



[1] A “folha de flandres” é a matéria prima para as latas tão nossas conhecidas nos mercados e na vida em geral.

[2] Juarez já havia vencido a eleição em 79, mas, por manobras “legais”, não teve sua vitória confirmada pela “justiça”.

[3] Esse diretor acabou passando-se para a Força Sindical, onde está até hoje. Justificou sua mudança dizendo que “estava cansado de comer em marmita e dormir em colchonetes durante os congressos e seminários”

[4] A URP (Unidade Referencial de Preços) congelada no início do governo Sarney e que muitas categorias, inclusive os metalúrgicos de Volta Redonda, já haviam ganho na Justiça mas as empresas se recusavam a pagar.

[5] A CSN nunca havia reconhecido o direito de eleição dos Delegados Sindicais, mesmo que o tema sempre voltasse à mesa de negociação. No entanto, o Sindicato mantinha permanentes reuniões com grupos de trabalhadores que não faziam parte da diretoria mas eram militantes muito ativos e conhecidos dos conjunto dos trabalhadores.

[6] O “abafamento” do Alto Forno é um dos processos mais complicados da greve. Normalmente, o Alto Forno trabalha com quantidades de coque (carvão mineral) e minério controladas. Daí vão sendo feitas as “corridas” da gusa que é a base para fazer o aço. Para “abafar” o Alto Forno, é preciso aumentar a quantidade de coque e reduzir o minério, mantendo o calor interno do equipamento mas não produzindo a gusa.

[7] Antes desta greve, o exército já havia sido mobilizado outras quatro vezes para reprimir as greves na CSN.